A Grande Ilusão Verdade, Memória e o Labirinto da Mente Humana
A série A Grande Ilusão (Fool Me Once, no título original), adaptação do livro de Harlan Coben produzida pela Netflix, mergulha o espectador em um emaranhado de mistérios, reviravoltas e jogos mentais que desafiam a percepção da realidade. Com um roteiro envolvente e atuações intensas, a trama explora temas como luto, culpa, negação e a fragilidade da memória — elementos profundamente humanos que, sob a lente da psicanálise, revelam as complexas camadas do inconsciente.
A história acompanha Maya Stern, uma ex-militar que tenta reconstruir a vida após o assassinato de seu marido, Joe. Porém, o que parecia uma tragédia definitiva ganha contornos surreais quando Maya acredita ver o marido — já morto — vivo em uma filmagem caseira. A partir daí, inicia-se uma jornada de desconfiança, delírio e descoberta, em que o espectador, assim como a protagonista, não sabe mais o que é verdade ou ilusão.

Entre o real e o imaginário: a mente em colapso
Do ponto de vista psicológico, A Grande Ilusão aborda a tênue linha entre o real e o imaginário. Maya, abalada por traumas de guerra e pela perda de entes queridos, vive um estado de constante alerta e desconfiança. Essa hipervigilância — um traço típico do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) — distorce sua percepção e cria uma realidade paralela onde o passado se mistura ao presente.
Freud, ao falar sobre os mecanismos de defesa do ego, identificou na negação e na projeção formas inconscientes de lidar com o insuportável. Em Maya, a recusa em aceitar a morte do marido é uma manifestação clara desse conflito interno. Ela projeta em imagens externas — as filmagens, os sinais, os indícios — a esperança de que algo ainda possa ser revertido. A câmera de segurança, portanto, funciona quase como um espelho simbólico do inconsciente: um instrumento que devolve à protagonista o reflexo de seus próprios medos e desejos reprimidos.
O luto como campo de batalha interno
A série também propõe uma reflexão sobre o processo de luto. Freud, em seu texto “Luto e Melancolia”, explica que o luto saudável implica o reconhecimento da perda e a progressiva retirada de libido do objeto amado. Já na melancolia, o sujeito se recusa a abandonar o objeto perdido, identificando-se com ele e internalizando a dor. Maya parece habitar exatamente esse espaço entre o luto e a melancolia — uma fronteira psíquica onde a ausência se torna presença constante.
Sua obsessão em desvendar a verdade sobre a morte de Joe é, na verdade, uma tentativa inconsciente de manter o vínculo com ele. Cada pista, cada lembrança, cada flashback de guerra é uma forma de ressignificar a perda, mesmo que isso a conduza à autodestruição. O que ela busca não é apenas justiça, mas também redenção — uma reconciliação com o próprio passado, marcado pela violência e pela culpa.

O inconsciente como detetive invisível
Do ponto de vista psicanalítico, A Grande Ilusão pode ser lida como uma metáfora para o funcionamento do inconsciente. Assim como a trama se constrói em torno de segredos e verdades ocultas, a mente humana também esconde seus próprios enigmas. A investigação policial que estrutura a narrativa é, simbolicamente, uma investigação psíquica: cada descoberta externa reflete uma revelação interna.
Quando Maya se aproxima da verdade, ela também se aproxima de si mesma — de suas memórias reprimidas, de suas escolhas passadas e das consequências que elas geraram. Lacan diria que o sujeito se constitui no campo do Outro, e é nesse espelhamento entre o “eu” e o “outro” (marido, irmã, filha, colegas de guerra) que Maya tenta encontrar um sentido para o caos. O enigma externo é, portanto, o reflexo do enigma interno.
A ilusão como mecanismo de sobrevivência
O título da série, A Grande Ilusão, sintetiza o tema central: a necessidade humana de construir ilusões para suportar a dor. Na visão freudiana, a ilusão não é apenas engano, mas também defesa — uma narrativa que permite ao sujeito manter sua integridade psíquica diante do trauma. Maya cria uma ilusão para sobreviver, mesmo que essa fantasia a leve à beira da loucura.
A psicanálise, nesse sentido, não condena a ilusão, mas a compreende como parte do processo de elaboração. O perigo surge quando a ilusão se torna prisão — quando o sujeito não consegue mais distinguir o que é simbólico do que é real. É exatamente esse o dilema de Maya: entre a verdade objetiva e a necessidade subjetiva de acreditar.

O espelho da mente
No fim, A Grande Ilusão é mais do que um thriller psicológico — é um retrato da vulnerabilidade humana diante da perda e da culpa. Sua força está em mostrar que, por trás de cada mistério, existe uma mente tentando dar sentido ao inominável. A série convida o espectador a olhar para dentro, a questionar suas próprias ilusões e a reconhecer que, às vezes, é na confusão entre realidade e imaginação que a verdade psíquica se revela.
Como toda boa narrativa psicanalítica, A Grande Ilusão não entrega respostas fáceis. Ela nos lembra que o inconsciente é um território de sombras e espelhos, e que, muitas vezes, é justamente a ilusão que nos permite continuar vivendo.
