Inferno em La Palma: Quando o Fogo Devasta a Ilha e a Alma

A série Inferno em La Palma (título original: El Infierno), produção espanhola baseada em fatos reais, estreou com grande repercussão por sua abordagem intensa, dramática e envolvente de um desastre ambiental que escancarou não apenas as chamas físicas que devastaram a ilha de La Palma, nas Ilhas Canárias, mas também os incêndios emocionais que corroem as relações humanas e a estrutura social em momentos de crise extrema.
A minissérie é inspirada nos incêndios que, entre 2009 e 2016, devastaram áreas significativas da ilha. O enredo gira em torno de uma tragédia ambiental que se torna pano de fundo para revelar disputas políticas, corrupção, negligência estatal, dramas pessoais e tensões comunitárias. A narrativa se desenvolve de maneira crescente, com episódios que exploram diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos, envolvendo bombeiros, jornalistas, políticos, moradores e pessoas diretamente afetadas pela catástrofe.

Com produção da RTVE e direção de Óscar Pedraza, a obra mantém um ritmo intenso, misturando cenas de ação em meio ao fogo com momentos de introspecção e confronto pessoal. A fotografia e trilha sonora contribuem para criar uma atmosfera opressiva, sufocante, que transmite a sensação de estar cercado pelas chamas — tanto reais quanto metafóricas.
Enredo e estrutura narrativa
Inferno em La Palma não se limita a relatar os fatos de um incêndio florestal. Ao invés disso, constrói uma trama de múltiplas camadas, explorando desde a imprudência humana que contribui para a tragédia, até os interesses escusos que se aproveitam dela. O protagonista, um bombeiro veterano, serve como fio condutor da história. Ele não apenas combate as chamas, mas enfrenta também seus próprios traumas, perdas familiares e dilemas morais.
Além dele, há uma jornalista que tenta expor a verdade por trás dos bastidores políticos e empresariais que lucram com a devastação ambiental. A figura de um político ambíguo, preocupado mais com sua imagem do que com a população, retrata com precisão o oportunismo diante da dor alheia.

A série acerta ao mostrar o desastre como algo multifacetado: há o fogo físico, visível e destrutivo, mas também o fogo invisível da ganância, da negligência, da culpa e do medo — que corrói silenciosamente.
Elementos técnicos e atuações
O realismo visual da série impressiona. As cenas dos incêndios são impactantes, resultado de uma combinação eficiente entre efeitos especiais e locações reais. A sensação de urgência é constante, e a direção de arte reforça o tom claustrofóbico que a série busca transmitir.
As atuações são densas e comprometidas. O protagonista transmite dor e exaustão emocional de maneira convincente. A jornalista interpretada por uma atriz de destaque da cena espanhola (cujo nome varia conforme a versão) traz força e vulnerabilidade à medida que se aprofunda na investigação.
Impacto social e mensagem ecológica
Outro ponto relevante é a crítica direta à forma como autoridades tratam os desastres naturais. A série provoca o espectador a refletir sobre responsabilidade ambiental, o papel do Estado na prevenção e resposta a tragédias, e a vulnerabilidade das comunidades frente à burocracia e corrupção.
Além disso, Inferno em La Palma denuncia o abandono de áreas rurais, a falta de planejamento urbano e o desprezo pelas práticas sustentáveis, elementos que, somados, tornam tragédias como essas cada vez mais frequentes.

Análise psicológica e psicanalítica
Sob a perspectiva psicológica, a série oferece um campo fértil para refletir sobre o impacto do trauma coletivo e individual. O fogo pode ser interpretado como símbolo do inconsciente em erupção — um conteúdo reprimido que se manifesta de forma violenta, descontrolada e, muitas vezes, destrutiva.
O protagonista, por exemplo, é movido por um trauma não resolvido: a perda de um ente querido em um incêndio anterior. Esse luto não elaborado reflete o conceito freudiano de “repetição traumática”, em que o sujeito, inconscientemente, se coloca em situações similares à do trauma original na tentativa de dominá-lo. Ele vive em constante estado de vigília, num ciclo de culpa e expiação.
A jornalista representa a busca pela verdade, mas também encarna a angústia diante de um sistema opressor. Sua jornada pode ser lida como uma luta contra o “Superego” institucional — uma instância que exige conformidade, silêncio e submissão. Seu enfrentamento, ainda que solitário, é um movimento de individuação junguiana, no qual o sujeito busca integrar suas sombras e se posicionar diante da verdade.
O fogo coletivo pode ainda ser entendido como metáfora da pulsão de morte (Thanatos) que atravessa os personagens e as estruturas sociais. A destruição não é apenas física, mas também psíquica, afetiva, ética. A série nos mostra que, quando os vínculos sociais se rompem e o cuidado com o outro desaparece, o fogo do descaso se espalha rápido e silenciosamente.
Inferno em La Palma é uma obra contundente que vai além do drama catástrofe. Ela nos obriga a olhar para as cinzas que escondemos sob o tapete: traumas, negligências, injustiças e emoções não elaboradas. Ao final, fica a pergunta: quantos incêndios ainda precisamos enfrentar para, de fato, aprendermos a cuidar do que é essencial?