“Sandman”: Um mergulho no inconsciente humano através dos sonhos

A série Sandman, baseada na aclamada graphic novel de Neil Gaiman, é uma das mais profundas e instigantes produções lançadas pela Netflix nos últimos anos. Misturando fantasia sombria, filosofia, mitologia e reflexões existenciais, a série narra a jornada de Sonho (ou Morpheus), um dos sete Perpétuos — entidades cósmicas que representam aspectos fundamentais da existência: Sonho, Morte, Desejo, Destino, Desespero, Delírio e Destruição.

Morpheus é o governante do Sonhar, o reino onde os sonhos e pesadelos humanos ganham vida. No início da série, ele é capturado por um ocultista no início do século XX e permanece preso por mais de 100 anos. Durante sua ausência, o mundo dos sonhos se desestrutura, causando desequilíbrio na mente humana. Quando finalmente escapa, Sonho embarca em uma jornada para restaurar seu reino, reencontrar suas criações perdidas e, no processo, confrontar suas próprias limitações emocionais.
A simbologia dos Perpétuos e o inconsciente coletivo
Cada um dos Perpétuos representa uma parte essencial da psique humana. Sonho, por exemplo, é a personificação dos desejos, medos e narrativas que compõem o inconsciente. Morte, retratada de forma doce e acolhedora, desconstrói a ideia tradicional de fim trágico, oferecendo uma visão mais serena do inevitável. Desejo, ambíguo e provocativo, simboliza a constante insatisfação humana, enquanto Desespero espelha os estados depressivos e autodestrutivos.
A série mergulha em arquétipos junguianos, como o sombra (representado por Coríntio, o pesadelo que foge ao controle), o self (Morpheus tentando se compreender como mais que uma entidade cósmica), e o inconsciente coletivo — visível na maneira como os sonhos afetam e conectam todas as pessoas. As histórias paralelas, como a do escritor Richard Madoc e sua prisioneira Calíope, ou a do homem imortal Hob Gadling, são metáforas dos desejos humanos de poder, eternidade e liberdade.

O Sonhar como representação da psique
O reino do Sonhar é uma metáfora clara do inconsciente. É instável, mutável, fragmentado, mas também estruturado por regras e símbolos — assim como a mente humana. Quando Morpheus retorna ao seu reino após um século de ausência, encontra tudo em ruínas. Essa decadência pode ser interpretada como um reflexo da repressão prolongada: ao negar o inconsciente (representado pela ausência de Morpheus), o indivíduo se torna vulnerável ao caos interno, à desorganização mental e ao surgimento de distúrbios como insônia, delírios e confusão existencial.
Além disso, o fato de que Sonho precisa recuperar seus artefatos mágicos (areia, elmo e rubi) é simbólico de um processo de reintegração da identidade. Cada objeto representa uma função psíquica: o pó (ligado ao controle dos sonhos), o elmo (símbolo do poder arquetípico) e o rubi (manifestação da imaginação criadora).

Análise psicológica e psicanalítica de Sandman
Do ponto de vista psicológico, Sandman aborda com profundidade a jornada do herói interior. Morpheus é um personagem inicialmente rígido, preso a regras absolutas e à sua função cósmica. Ao longo da série, ele é confrontado com sua própria humanidade — ou, mais precisamente, com sua falta de empatia, seu orgulho e sua resistência à mudança. Essa jornada é uma metáfora clara para o processo de individuação, conforme descrito por Carl Jung: o caminho para integrar todas as partes do eu, inclusive as sombras e contradições, para alcançar a totalidade psíquica.
A presença constante da Morte, que interage com Morpheus de forma leve e acolhedora, pode ser vista como o confronto necessário com a finitude, tema caro à psicanálise freudiana. Para Freud, o medo da morte está diretamente ligado ao recalque dos desejos e à angústia da castração simbólica — ou seja, à perda do poder, do controle, da imortalidade imaginária. A forma como Morpheus ressignifica sua relação com a Morte é o que possibilita seu crescimento emocional e sua abertura a transformações.
Outro aspecto relevante é o narcisismo de Morpheus, que se manifesta em sua rigidez moral, na dificuldade em perdoar e em sua visão autoenaltecida de seu papel no universo. Esse traço se assemelha ao narcisismo primário descrito por Freud: uma fase em que o ego se vê como centro de tudo. Sua evolução mostra uma transição rumo à empatia e à alteridade.

O episódio “24 Horas”, que se passa em uma lanchonete dominada por um dos rubis de Sonho, é um dos pontos mais densos da série. Ali, os personagens são levados a agir segundo seus impulsos mais reprimidos. A ausência do “superego” (a consciência moral) nesse contexto mostra como, sem as estruturas reguladoras da mente, o ser humano pode mergulhar em um caos psíquico profundo, algo que remete diretamente ao conceito freudiano de Id e ao colapso das barreiras do ego.
Sandman não é apenas uma série de fantasia: é uma obra densa e simbólica sobre a psique humana. Ao explorar o mundo dos sonhos, Neil Gaiman e os criadores da série constroem uma narrativa que serve como espelho do inconsciente. A jornada de Morpheus é a nossa própria jornada interna, em busca de equilíbrio entre razão e desejo, controle e caos, imortalidade e finitude.
Ao fim, entendemos que Sonho não é apenas um senhor de um reino fantástico — ele é o reflexo da alma humana, com todos os seus labirintos, dores e possibilidades de transformação. A série, portanto, é uma fábula psicanalítica disfarçada de fantasia sombria, que convida o espectador a olhar para dentro de si e compreender seus próprios sonhos — e pesadelos.